Escrever histórias que demoram a decolar é muito comum entre os roteiristas iniciantes – e até entre os mais experientes. Existem inúmeros fanzines em que os autores gastam todo o primeiro capítulo com o que chamam de “apresentação de personagens“. As vezes, até dois, três capítulos se passam, e nada de história. E quando pergunto onde está a trama, a resposta é quase sempre a mesma: “Calma, isso foi só o começo. Agora é que a história começa mesmo!”

Isso é uma má condução de cenas. É muito importante que o leitor saiba sobre o que se trata a história logo no início, no máximo até a metade do primeiro capítulo. Claro que as primeiras páginas normalmente mostram os personagens em seu cotidiano, mostram onde a história é ambientada, situa o leitor. Os que aprenderam a dividir o roteiro no esquema de três ou cinco atos sabem que o primeiro ato é dedicado a isso. Mas se for APENAS isso, não tem valor algum e se torna obsoleto.

Sim, o leitor precisa ser situado na história e entender quem são os personagens. Mas ninguém quer saber de uma cena onde nada significante aconteça. É chato, tedioso e sem propósito.

O objetivo de uma história é mostrar o drama humano, seja em forma de comédia, ação, terror, aventura ou romance. Por drama, entende-se dilemas e conflitos. Uma história sem essas duas coisas não tem razão de existir.

Imagine um protaginista que consegue tudo o que quer sem obstáculos e nunca precisa fazer uma difícil escolha entre duas coisas ao seu alcançe. Que tipo de história seria essa? É exatamente a história que escrevem em muitos primeiros atos por aí.

Não importa se depois a história melhora e os dramas aparecem. A essa altura, você provavelmente já perdeu o interesse do leitor e ele já escolheu outra coisa para ler – ainda mais se tratando de zines.

Então, comofas?

1-Durante toda o primeiro ato, ou “cenas de apresentação”, é necessário incluir em TODAS as cenas um objetivo para o personagem e pequenos conflitos, coisas que o impedem de atingir esses objetivos. Se em sua cena não há, reescreva ou delete.

2-Após o que você considera suficiente para apresentação, inclua o quanto antes o ponto de virada e suas consequencias, ainda no primeiro capítulo, para sabermos do que a história vai tratar durante todas as próximas cenas. O leitor precisa saber disso, precisa de uma garantia de que está lendo algo que ele vai gostar do iníco ao fim.

Ex de um péssimo começo de história: Fulano acorda, se arruma para ir à escola, toma o café da manhã, se despede de seus pais. Pega o ônibus, desce em frente ao colégio, entra pelo portão. Cumprimenta seus amigos, entra na sala de aula, senta-se em seu lugar, o primeiro da fila. Então entra o professor e o cumprimenta.

Se divertiu lendo isso? Ou não via a hora de acontecer alguma coisa interessante ou acabar logo? De que se trata a história? O que a faz valer a pena?

Agora que tal isto: Fulano acorda já atrasado para a aula. Se arruma, mas não consegue encontrar nenhum par de meias limpas em meio à bagunça. Usa meias de pares diferentes ou vai sem? Escolhe usar meias diferentes. Corre para tomar o café da manhã, mas sua mãe já o aguarda para dar uma bola bronca por ter sido acordada às quatro da manhã com a voz dele no TeamSpeak liderando seu clã de WoW. Ele adora sua mãe, mas nessas horas ele se irrita e grita com ela. Perde a fome e sai nervoso. Perde o ônibus, mas por sorte uma colega, por quem ele é apaixonado, passa de bicicleta e dá carona. Ambos chegam atrasados e ficam do lado de fora. Resolvem pular o muro, são pegos e ganham suspensão.

Sempre o personagem quer alguma coisa, mesmo que seja beber água, e sempre aparece um obstáculo.

Isso pode ser um monte de clichê, mas há dois pontos a favor de usar essa sequencia. A primeira, e mais óbvia, é que ela é infinitamente mais interessante que a anterior. E a segunda é que isso retrata a vida da maioria dos estudantes. E isso é o mais importante de uma história, retratar a vida como ela é, como diria Nelson Rodrigues. Com isso os leitores se identificam com os personagens e esse é o segredo para que eles amem sua história.

Claro, essa foi uma opção humorística. Você pode trocar por conflitos dramáticos, de ação, qualquer coisa de acordo com o gênero da história.

Novamente, se você realmente quer páginas de apresentação, você precisa definir bem o primeiro grande conflito, ou a primeira virada de ato, que é o que vai acabar com a vida normal do protagonista e inseri-lo na aventura. De preferencia, essa virada deve acontecer ainda no primeiro capítulo, com tempo de mostrar as consequencias dela.

Ex: Depois pegar suspensão do colégio, os dois amigos saem e decidem não levar a carta do diretor a seus pais. Vão até o fliperama (é, na minha época de estudante isso ainda existia, me deixe ser saudosista) e gastam todo o dinheiro do lanche em fichas sem saber que estão sendo observados por uma figura que aparece nas sombras. Após perderem a última ficha, o protagonista se revolta, deixando somar toda a sua fúria de um dia inteiro de fracasso e destroi a máquina de fliper com tanta raiva que assusta a todos. A sombra que o observava se manifesta a todos e entra na cabeça do protagonista, transformando-o no terrível Fúria. Furioso, ele sai destruindo tudo, mas quando sua amiga lhe implora para parar e o abraça, ele se tranquiliza e volta ao normal.

Percebem como usei todas as cenas anteriores da apresentação de personagem para culminar todos os problemas do dia-a-dia dele em um momento crucial que mudou sua vida para sempre? Isso é ótimo para o leitor, pois é uma recompensa pelas páginas de introdução. Notem também como antecipei o ponto de virada mostrando a sombra seguindo o protagonista. Ainda que houvesse mais uma ou duas cenas de blablabla, o leitor já podia perceber que havia algo errado, algo estava prestes a acontecer, isso faz crescer a expectativa.

Também incluí uma consequencia para a virada. Ele sai quebrando tudo e sua amiga, por quem ele é secretamente apaixonado, o faz voltar ao normal. Isso não é o fim da história, é o fim do ato. O Fulano ainda tem o Fúria dentro de sua mente, e ele irá retornar. É uma boa forma de terminar o primeiro capítulo.

Há outras opções menos convencionais. Você pode colocar a virada bem mais cedo. Nesse caso, a própria virada pode ser usada para quebrar a calmaria e falta de conflitos: Fulano acorda na hora de ir à escola. Ele é um nerd e a perfeição faz parte de sua vida. Se arruma, toma o café da manhã, se despede dos pais e ao sair pela porta descobre que sua casa está flutuando no vácuo do espaço sideral.

Nesse exemplo, eu coloquei um início de dia totalmente normal, sem conflitos e sem dilemas, mas calculei o tempo que essa cena gasta até que o ponto de virada quebre totalmente o clima de normalidade tediosa com uma grande surpresa para o protagonista – e para o leitor também. Esse tipo de início de história é bem funcional e empolgante, mas é difícil de ser construída, exatamente por precisar desse calculo de timming – qualquer exagero estraga a cena e se for rápido demais tira o impacto da virada – e de uma virada realmente surpreendente para compensar o tédio anterior.

Existem ainda outras técnicas. Uma delas é colocar o conflito logo no início e levar o protagonista até ele no final do primeiro ato. Ou ainda colocar o conflito e o ponto de virada no início e apresentar os personagens já dentro dessa nova realidade. Isso é empolgante e enche a história de mistérios. Outras ainda menos convencionais são utilizadas por grandes mestres e é preciso habilidade. Leia suas HQs favoritas, assista filmes e seriados (episodios de series são ótimos estudos para composição de cenas e atos) e descubra quais são as formas que os autores utilizam para criar uma cena inicial de apresentação e como eles inserem a primeira virada de ato. Você vai se surpreender com as opções disponíveis.

E lembre-se: um bom início pode fazer toda a diferença para sua história e para os leitores.